sábado, 29 de novembro de 2008

os desafios da pesca industrial

Reportagem: Francisco José (Vigia de Nazaré, Pará)

Madrugada em alto-mar. Um grupo de homens se arrisca em meio a toneladas de peixes. Mas será que essa fartura está mesmo com os dias contados? Nossa viagem em busca de uma resposta começa no norte do país. Em Vigia de Nazaré, no Pará, embarcamos para uma pescaria em alto-mar.

Acompanhamos a viagem dos pescadores. Os barcos partem pelo Rio Pará ao encontro do Oceano Atlântico. Só a distância entre uma margem e outra na foz do rio é de 60 quilômetros. Eles ficam até 90 dias em alto-mar.

O cozinheiro e pescador Mário Moraes, os pescadores Natanael, Manoel e Edvaldo dos Santos, o geleiro Luiz Valdecir de Souza e o comandante José Ramos da Silva: foi com eles que nós convivemos em uma longa jornada, que começou na foz da Bacia Amazônica.

O barco, de pesca industrial, tem capacidade para armazenar 40 toneladas de peixes. A cabine do comandante é bem equipada – tem até sonar para localizar os cardumes. O equipamento moderno ajuda muito.

A pesca industrial é feita por dois barcos. As redes são esticadas entre um e outro, por um sistema de roldanas e cabos de aço. É a chamada pesca de arrasto. Para isso, uma segunda embarcação acompanha a outra o tempo todo.

Para quem está acostumado a viver em terra firme, as acomodações do barco são bem modestas: duas cabines com beliches, um pequeno banheiro e a cozinha, onde quem manda é seu Mário. Aos 60 anos, além de pescador, ele é cozinheiro – e dos bons. Prepara pelo menos quatro refeições por dia – peixe, frango, carne vermelha. Diz que passou a ser cozinheiro por acaso, há mais de 20 anos.

"Estava trabalhando como pescador. Certa vez, fui em uma embarcação que não tinha cozinheiro. Me convidaram para cozinhar e eu aceitei", lembra seu Mário.

A beleza do pôr-do-sol anuncia que está começando nossa primeira noite em alto-mar. Em pouco tempo vamos cruzar a linha imaginária do Equador. É no outro lado do mundo, um pouco além da fronteira, que se concentram os grandes cardumes da região.

Para se ter uma idéia de como os pescadores avançam pelo mar, nos aproximamos da Linha do Equador, deixando o Hemisfério Sul e entrando no Hemisfério Norte. Quando chegamos ao Hemisfério Norte, começa a pescaria.

"Chegamos à área da pesca no amanhecer do dia. Por volta das 8h, largamos a rede", conta o comandante José Ramos da Silva.

O espetáculo do amanhecer coincide com um momento de muita tensão no barco. Os pescadores fazem o primeiro lance de rede. Cada um assume seu posto, sua tarefa. Depois do lançamento, os dois barcos se aproximam. A rede vai ser arrastada pelas duas embarcações ao mesmo tempo, uma ao lado do outra. Durante as manobras, a comunicação entre os barcos é feita através de um apito. Tudo sob orientação do comandante. É ele quem determina o local da pesca, a hora de jogar e recolher a rede.

"A rede tem aproximadamente 35 metros. Mas na água ela tem de 14 a 16 metros, dependendo da abertura das duas embarcações, já que ela vem 400 metros atrás do barco", diz o comandante.

Depois de duas horas de arrasto, o comandante José Ramos da Silva manda puxar a rede. Toda a tripulação do barco participa da operação. A rede surge, é içada por um guindaste sobre o convés e aberta. Um cardume de arraias foi capturado. Até quatro anos atrás elas eram devolvidas ao mar porque não tinham valor de mercado. Hoje, são consumidas, principalmente na região Nordeste e também em países da Europa, como França e Espanha.

Os pescadores começam a trabalhar na separação dos peixes. Nessa hora, todo cuidado é pouco. As arraias têm ferrões no rabo. As ferroadas são muito dolorosas e podem inflamar. Por isso, a primeira coisa a ser feita é retirar o ferrão. Só depois elas são encaminhadas para Luiz Valdecir, o geleiro, responsável pela conservação do pescado. O barco tem capacidade para armazenar 40 toneladas de gelo.

Quase todo pescador tem cicatrizes de ferroadas de arraias e ferimentos de outros peixes. Seu Mário já ficou seis meses de licença médica, em uma das vezes em que foi atacado por uma delas.

"Eu fui ferrado várias vezes no pé. Mas estamos na profissão...", diz seu Mário, resignado.

"Só de peixe, já peguei uns seis furos: bagre, cambéu... Passando disso, tudo é lazer", brinca o pescador Edvaldo dos Santos.

É claro que nem tudo é lazer. Mas, sem as brincadeiras, como seria a jornada desses homens sempre à beira do perigo? Hora do churrasco. E ele acontece ali mesmo, no meio do convés. É o "avoado", o peixe assado em um fogareiro de carvão. Uma festa para os pescadores. Seu Mário providencia as guarnições: farofa, arroz, verduras. E todos comemos ali mesmo. Ao redor, para onde se olhe, só se vê céu e mar.

Continuamos avançando rumo ao norte. No caminho, encontramos dois barcos na pesca de arrasto puxando a rede. Um deles capturou um mero. A pesca do mero está proibida em todo o Brasil, para preservação da espécie.

No nosso barco, o pescador-cozinheiro já capricha na próxima refeição. A bordo, os horários são diferentes. Os pescadores dormem – ou melhor, descansam – nos intervalos entre um lance de rede e outro. E a comida só é feita quando a fome aparece. Seu Mário escolheu uma pescada amarela. Depois do almoço, o trabalho continua. Quem tem tempo para se deslumbrar com tanta beleza?

Na travessia encontramos barcos de pesca e grandes embarcações. Navios carregados de contêineres que vêm da Zona Franca de Manaus, a caminho do Sul e Sudeste do país.

Chega a hora de jogar a rede, de trabalhar novamente. O segundo barco se aproxima. O cabo é jogado de um para o outro. A rede fica presa entre os dois. Vai começar mais um arrasto.

Desta vez a pescaria foi melhor. Diversas espécies de peixes, além de grandes arraias, veio pescada-amarela, o peixe mais procurado na região. E tem também o peixe-galo, o rosado, a gurijuba, o peixe-espada e até o pequeno tubarão-martelo.

Luiz Valdecir, o geleiro do barco, vai arrumando os peixes no porão. A função dele é importantíssima, porque o armazenamento correto é fundamental para a conservação do pescado. O barco tem 40 toneladas de gelo no porão para conservar o peixe.

"Todos os peixes pescados ficam aqui. Os mais pesados, como arraia, ficam embaixo. Preparamos uma camada de peixe e jogamos o gelo para conservar. Quando enche, cobrimos com tábuas para os peixes não virem para cima da gente", conta Luiz Valdecir.

Ao cair da tarde os pescadores, mesmo depois de tanto trabalho na pescaria, não descansam: aproveitam o intervalo para consertar as redes. Eles dormem muito pouco, mas não parece.

Quase 30 horas navegando, e é apenas o inicio da viagem. Os pescadores preparam o terceiro lance de rede. É sempre assim: dia e noite pescando a 114 quilômetros de distância da costa do Pará.

O segundo barco se aproxima e agora, Manoel, no apito, comanda a operação. Enquanto os barcos fazem o arrasto, os pescadores aproveitam para lavar o convés.

De madrugada, é hora de puxar a terceira rede. Com todo cuidado, para evitar acidentes. A rede é içada e, desta vez, a quantidade de peixes é impressionante. Apenas em um lance, cerca de três toneladas.

Os peixes se espalham por todo o convés. O barco balança com tanto peso de um lado para o outro. Para evitar as ferroadas das arraias, os pescadores caminham pela amurada do barco. Entre eles, seu Mário, aos 60 anos. Cair no mar à noite é um perigo. Resgatar alguém na escuridão é quase impossível.

Mas acidentes acontecem. O cozinheiro do nosso barco se emociona ao lembrar um naufrágio ocorrido quando ainda trabalhava em uma pequena embarcação de pesca artesanal. "Perdi meu pai e um primo de 16 anos. Depois que o barco afundou, ficamos à deriva. Meu pai morreu às 11h; e meu primo, perto das 13h", recorda.

Depois de dois dias e duas noites em alto-mar, voltamos a Vigia de Nazaré, no meio de uma tempestade típica da região.

Chegando ao porto, o pescado vai para a indústria de beneficiamento. Parece uma linha de montagem. Tudo é aproveitado, até pequenos peixes sem grande valor comercial.

"Esse produto – sem pele e sem sangue – é processado em um equipamento que gera o chamado CMS: carne mecanicamente separada. Esse produto dá origem a viários outros: medalhão de peixe, picadinho de peixe, cubinho de peixe, empanados. Tudo é feito a partir dessa carne de pescado que até quatro anos atrás era descartada", diz o engenheiro de alimentos Júlio Recski.

"O filé de arraia vai para a mesa dos espanhóis. É fauna acompanhante, que antes era jogada fora. Hoje exportamos para a Europa e os Estados Unidos. Da pele, fazemos bolsa, calçados, outros produtos desse peixe", acrescenta o empresário Fernando Ferreira.

Vida de pescador é uma aventura sem fim. Mas é também uma rotina de trabalho duro e arriscado. O peixe que ele trouxe hoje vai para a mesa de milhares de brasileiros. Mas acaba logo. Por isso, depois de dois ou três dias em terra firme, lá vão eles de volta, lançando rede, puxando rede.

Nenhum comentário: